O poço antes de “O Poço” da…
2 de dezembro de 2024
Post por: bernardolopes

O poço antes de “O Poço” da Netflix

Recentemente foi lançada a sequência do filme O Poço, sucesso de um pouco antes da pandemia, que abriu alas pra uma leva de filmes da Netflix que se arriscaram a entregar finais abertos, preferindo gerar debate nas redes sociais a agradar ao público (o que ainda acho surpreendente).

Eu gosto de O Poço. E semana passada sentei pra ver O Poço 2 e posso dizer que até o aprecio pelas mesmas razões: consegue entreter a gente sem muitas exigências, ao mesmo tempo em que nos coloca pra pensar sobre organização socioeconômica, sobre política, e sobre o que é, de fato, natureza humana ou construção social. O filme tem lá seus excessos explicativos pra se fazer entender rápido, mas tá bom, isso ajuda mesmo em alguns aspectos; eu teria reclamado há uns anos, mas agora penso, “foda-se, conte-me uma boa história, ainda que você tenha que se render a essas facilitações e clichês”. Tá sendo assim com a série Senna, também. Não dá pra exigir que todo mundo venha querendo inventar a roda. O familiar vende, e a indústria ama isso.

Mas a história de uma prisão misteriosa, com um sistema de celas verticais no qual uma plataforma descendente leva comida dos aposentos mais altos até os mais baixos, provando, assim, a dificuldade humana de ser justo — e de comer só a sua parte —, com consequências brutais, lembra um pouco uma outra história: a do cineasta canadense Denis Villeneuve (que você pode achar que não conhece, mas conhece sim), lançada em 2008. É o curta metragem de 11 minutos Próximo Piso, servido de graça (com o perdão do trocadilho) no YouTube.

Foi assim que conheci o querido Denis Villeneuve, um dos melhores diretores e roteiristas de cinema da atualidade. Ele tinha acabado de lançar um filme com o Wolverine, Hugh Jackman, e o eterno Jack de Brokeback Mountain, Jake Gyllenhaal, além de Paul Dano, que consegue ser ao mesmo tempo um fofo (Pequena Miss Sunshine) e apavorante (Sangue Negro). Enfim — temos muito o que falar de Denis Villeneuve; e, enquanto você descobre que também já assistiu a alguma coisa dele, ou, se não, já sabe o que fazer assim que tiver um tempo livre, deixa eu te contar 5 (na verdade 6) lições que tirei dos filmes dele que já vi até aqui:

1. Dizer que “nada é o que parece” é demais, mas muita coisa não é mesmo. (Os Suspeitos, 2013) É uma tristeza, mas ao mesmo tempo muito tentador, desconfiar de um sujeito que tem tanta cara de bonzinho — ainda mais se o crime cometido foi contra alguém que você mais ama neste mundo. Quando a gente acha que o problema desse filme tá acabando, ele tá só começando. Suspense de tirar o fôlego e de testar os limites do raciocínio! (Disponível na MUBI.)

2. O filme mais assustador que já vi na minha vida não é de terror
(Polytechnique, 2009) Fui fã de filme de suspense, de terror e de assassinato minha adolescência inteira. Acho que, quando a gente gosta de filme assim, é porque consegue sentir um certo distanciamento que acho mais natural em alguém muito jovem, que ainda não conheceu as durezas reais do mundo (não sei!, é só uma suposição). Como eu já gostava de Villeneuve, me indicaram um filme mais antigo dele, chamado Polytechnique. Nunca senti tanto medo vendo um filme; mas agora era diferente: é porque eu consegui me colocar no lugar dos personagens de verdade. Ou o diretor conseguiu me colocar. Neste filme sobre um massacre numa escola, prepare-se pra se pegar fingindo de morto entre diversos corpos de colegas enquanto o assassino, armado, caminha perto de você em busca de sobreviventes. É um filme apavorante, de execução maestral. (Disponível em lugar nenhum, pelo menos não legalmente.)

3. Do outro lado de tudo, pode existir outro de você. (O Homem Duplicado, 2013) Um dos meus filmes favoritos até hoje. Conta sobre um professor de História que vive uma rotina entediante e repetitiva até descobrir, assistindo a um filme, que parece existir um cara idêntico a ele. O homem pesquisa, encontra o nome do ator, descobre onde ele mora e o stalkea até que, enfim, os dois se encontram cara a cara — e são realmente a cara de um, focinho de outro. A aura misteriosa e enevoada do filme faz a gente não querer desgrudar os olhos. É baseado no livro de mesmo nome de José Saramago (no qual, inclusive, tem uma cena maravilhosa que não foi pro filme: os dois homens, quando se encontram, tiram até a piroca pra fora pra ver se têm o pinto igual — e têm). O filme é de fritar os miolos, com um simbolismo que é difícil de entender e que muita gente odeia; mas, talvez justamente por ser tão estranho, é um dos finais de filme de que mais falo bem. Às vezes tem que pesquisar pra entender! Sou capaz de assistir a esse filme cinco vezes num só dia. (Disponível pra aluguel no YouTube, no Prime e na Apple TV)

4. Pra aprender uma língua estrangeira, é preciso aprender sobre a cultura por trás dela também e 4.5 Se enxergássemos o passado só como passado, ele não nos afetaria tanto. (A Chegada, 2016) Como um filme consegue ser genial como drama e ficção científica ao mesmo tempo? Muita gente torce o nariz quando se fala em ficção científica, como se fosse uma coisa boba, mas este é um dos filmes mais inteligentes que você vai ver na sua vida. Quando uma curiosa — e até cativante — raça alienígena estaciona suas naves em forma de lente de contato na Terra, uma linguista é contratada pra fazer o primeiro contato; ela se depara com um sistema linguístico complexo, que, junto a um físico meio técnico demais, ela tenta interpretar num longo processo que exige não só paciência como pensar fora da caixa. À medida que ela aprende o estranho idioma extraterrestre, seu cérebro começa a desenvolver uma habilidade que passa longe de todos nós, humanos: dizer qual é seria um spoiler terrível, mas se prepara, que é de explodir a cabeça. O filme é baseado num ótimo conto chamado “História da Sua Vida”, do Ted Chiang, que me ajudou a superar um namoro frustrado anos atrás: a história nos lembra de que passado, presente e futuro são conceitos puramente humanos e que, se aprendêssemos a entender que o passado não mais existe, sofreríamos menos. (Disponível pra aluguel no YouTube, no Prime e na Apple TV)

5. O ser humano é ser humano desde sempre e aonde quer que vá — e Shakespeare é uma grande prova disso. (Duna, 2021) Duna é o livro de cabeceira do protagonista de um dos meus seriados favoritos, o genial e pouco visto Lodge 49. Mas agora também é um filmaço de ficção científica que traz pras telas não só um visual de arregaçar, mas uma história no melhor estilo das peças de Shakespeare. E uma das melhores coisas que Shakespeare faz, desde 1588, quando sua primeira peça foi escrita (e o Brasil era só um bebezinho de país, veja só!), é mostrar que o bicho homem é do jeitinho que é há muito, muito tempo: e Duna só reforça que isso também aconteceria fora daqui. (Disponível na MAX)

O próprio curta-metragem Próximo Piso, que eu mencionei lá em cima, traz, assim como O Poço, uma crítica social que, se você olhar bem, acaba encontrando ali.  Ainda não assisti a Duna – Parte II (pelo mesmo motivo que às vezes se procrastina fazer as contas do mês: medo de não gostar do que se vai encontrar), nem Blade Runner 2049 (embora o Blade Runner original seja um dos filmes mais impressionantes que vi quando estudei roteiro de cinema), nem ainda tive coragem de assistir a Incêndios e Scicario (embora digam que são perfeitos), por estar meio saturado de tanta violência na televisão — não só nas notícias, mas também em filmes e novelas; inclusive, pretendo falar, num texto futuro, sobre algo que estou enxergando como uma obsessão atual pela ultraviolência. Mas Deni Villeneuve é inescapável. Um dos melhores criadores do cinema que temos hoje em dia.

 

P.S. 1:

O Poço, que foi dirigido pelo diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, me lembra muito a vibe de um outro filme, que assisti quando era adolescente e que na época tava bombando: O Cubo, de 1997. Conta a história de um grupo de pessoas que desperta num gigantesco labirinto em forma de cubo, e cada sala-cubo pode ser uma das inúmeras armadilhas ou um respiro entre uma e outra. Quem sobreviver “ganha” isso que parece um misterioso reality show — e (alerta de spoiler: se não quiser saber, pule de parágrafo) quem ganha é um personagem com síndrome de espectro autista. (Disponível pra aluguel no Google Play e na Apple TV)

P.S. 2: É um bocado curioso que filmes como O Poço, cujas ideias questionam o sistema socioeconômico em que vivemos, possam com tanta tranquilidade ser bancados por grandes empresas como a Netflix, que, teoricamente, tinham que ter medo de implantar ideias libertárias na nossa cabeça. Mas eles não têm, é claro: o sistema é forte demais pra que um filme gere uma revolução que os ameace, e eles sabem disso. Quem fala maravilhosamente desse assunto é o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin, em seu livro A Obra de Arte na era de sua Reprodutividade Técnica, que, apesar de ter sido publicado em 1936, parecia já estar falando de grandes veículos do entretenimento como Netflix: esses gigantões que são tão fortes que, mesmo arcando com trabalhos artísticos que podem cultivar ideias contrárias às desses grandes capitalistas, sabem que um punhado de espectadores revoltados contra o sistema não será capaz de fazer nem cosquinha no sistema. (Dá pra ler de graça aqui.)

Bernardo Lopes

BERNARDO EVANGELISTA LOPES nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1988. Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é escritor e professor de Língua Inglesa. Seus livros "O que disse o Imperador" (2016), "Dona" (2018) e "Debutante" (2021) foram publicados pela Metanoia Editora, do Rio de Janeiro. "Dona" foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, assim como seu ensaio crítico-literário "O Narrador Injustiçado" ("The Underrated Narrator"); ambos são vendidos em mais de 20 países pela Amazon. Bernardo é o Presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, onde ocupa a cadeira de nº 17, que homenageia o conterrâneo Júlio Ribeiro.