O futuro da literatura, por Siri Hustvedt
14 de abril de 2025
Post por: bernardolopes

O futuro da literatura, por Siri Hustvedt

Siri Hustvedt, autora descendente de noruegueses, escreveu romances extraordinários, como O Encantamento de Lilly Dahl — depois do qual nunca mais me desencantei com ela. (Mas admito que, pra muitos, deve ser um romance estranho, e “sem final”.) Escuto também muitos podcasts aos quais Siri é convidada; é um espetáculo escutar ela falar sobre os mais diversos assuntos:

Meu episódio de podcast favorito com ela é um em que Siri fala sobre família, ambivalência, repetição (em vários âmbitos) e até sobre curiosas questões científicas & culturais sobre a placenta. (Está aqui pra quem gostaria de escutar (em inglês), e aqui, pra quem prefira ler a transcrição.)

Recentemente, estou lendo, com calma, seu livro de ensaios Mothers, Fathers, and Others, no qual conheci seu incrível texto The future of literature” (O futuro da literatura), que eu traduzi e abreviei apresentar no Sarau de Sabará no Teatro Municipal (09/05/2025).

Mas, como mesmo essa versão extrapolaria o que o Sarau nos permitia apresentar, pra dinamizar, Ana Maria GuerraIsabella Carvalho de Menezes e eu decidimos transformar a ideia numa breve cena de teatro que você pode ler aqui (ficou muito divertido, e seguem aqui umas fotinhas).

  

Mas, para quem quiser ler minha tradução abreviada do texto original de Siri sobre como ela enxerga o passado, o presente e o futuro da literatura, deixo ele aqui, já que o livro ainda não foi traduzido pro português:

O FUTURO DA LITERATURA

O futuro é a terra das nossas expectativas, esperanças, fantasias e projeções — o que significa que o futuro é uma ficção. Caso esse lugar imaginário ameace ser sombrio e infeliz demais para se viver com tranquilidade, algumas pessoas acabam perdendo o desejo de continuar. Para viver no presente, os seres humanos precisam da ideia de um futuro bom; e, ainda assim, o futuro pertence ao tempo imaginário, não ao tempo real, porque ainda não foi vivido — e o que nós imaginamos do futuro é amplamente moldado por nossas experiências passadas e por como nos sentimos sobre elas. Nossas vidas passadas podem nos levar a imaginar para o futuro catástrofes ou utopias, ou alguma coisa entre um e outro, mas nós inevitavelmente esperamos algo dele.

Nossos cérebros, alguns cientistas argumentam, evoluíram para adivinhar o futuro. Quando eu acendo o interruptor de luz, adivinho o fato de que a luz irá acender, porque aprendi que esse gesto leva à iluminação do cômodo. De manhã, coloco leite na minha aveia e sei — ou melhor, conto com o fato de que — terá o mesmo sabor de sempre. A previsibilidade cria a automaticidade. Uma vez que aprendi como o interruptor de luz funciona, não preciso mais pensar sobre isso. Esticar a mão para ele é um gesto amplamente inconsciente. O argumento é o seguinte: Em termos evolutivos, prever é o que o cérebro evoluiu para fazer, pois aprendemos sobre o perigo e lembramos de evitá-lo. Previsões acuradas protegem a sobrevivência. Nós reservamos nosso pensamento consciente para surpresas, para quando o mundo não segue como planejado.

Não posso falar com confiança sobre o futuro de qualquer coisa que seja, incluindo o da literatura, embora eu não queira dizer que imagino que ela irá acabar. Contamos histórias sobre nós mesmos para dar sentido a quem somos. Existem muitas maneiras de contar a mesma história, é claro. Narrativas tanto omitem informações quanto incluem, inevitavelmente. Mas, sem memória, jamais poderíamos contar histórias sobre o passado. Não poderíamos fantasiar sobre o futuro, nem escrever romances sobre vidas imaginárias.

Mas nossas memórias autobiográficas, a maneira como retemos o passado no presente, são terrenos nebulosos. Não podemos retornar ao que foi, exceto através das lentes do agora. As transformações da memória são complexas e não completamente compreendidas, mas é bem sabido que os seres humanos podem recordar algo que nunca aconteceu ou que aconteceu com outra pessoa. Além disso, há fortes evidências empíricas de que a memória de cada pessoa pode ser manipulada pela pressão social. Memórias autobiográficas podem estar, sim, permeadas de ficção.

A verdade que busco como escritora de ficção não é um registro documental do passado. Estou buscando a verdade emocional. Quando escrevo, escrevo para um outro imaginário, um leitor imaginário. Toda história, todo romance, é contado ou escrito para outra pessoa. A linguagem, em essência, é dialogal. Como Bakhtin uma vez disse: “Cada palavra que dizemos pertence, pela metade, ao outro”.

E, através da literatura, temos permissão para viver experiências que se transformarão em memórias, memórias duradouras às vezes, de eventos que talvez evitaríamos se estivessem acontecendo conosco fora das páginas. É essa segurança de não estarmos realmente na história do livro que permite que a catarse aconteça; isso pode ser enriquecedor emocional e intelectualmente, e nos trazer emoções fortes sem risco de vida.

Por outro lado, livros podem ser perigosos. Eles podem ameaçar o status quo, podem nos sacudir, nos virar de cabeça pra baixo. Regimes políticos repressivos têm medo dos livros. Sabemos de escritores que já foram para a cadeia ou mortos pelo que escreveram. A literatura preocupa as pessoas.

Ler romances significa estar disposto a mergulhar nas complexas realidades de outras vidas. Significa ser curioso e disposto a se engajar em uma forma de pluralismo. Para mim, os melhores romances são aqueles que me impulsionam a adotar perspectivas múltiplas, com empatia. Ler é render-se a outra pessoa, compartilhar uma consciência com um outro ser narrador, ou vários, por um tempo.

E a leitura de ficção implica uma perda de si no outro. Para uma pessoa narcisista, maligna, tal perda de si não é possível. O que importa é ver-se continuamente refletido nos rostos que o adoram, de seu cônjuge, de seus amigos, da multidão. Não há diálogo aqui neste salão de espelhos. O outro existe puramente para inflar o eu. O outro é uma ferramenta, uma coisa, um objeto, um veículo; não um interlocutor.

Estou argumentando que a experiência de romances complexos, com suas vozes plurais e múltiplos pontos de vista, com seus personagens que sofrem e celebram, que viajam e voltam para casa, ou apenas sentam em um quarto refletindo, que são gentis e cruéis — essas pessoas imaginárias podem e de fato conseguem nos mover para outros lugares. O estrangeiro torna-se familiar. Ler romances não é uma solução para nossas misérias políticas. Para isso, são necessários organização, resistência ativa e retórica firme. Mas precisamos de histórias também, boas histórias com nuances e ambiguidades que perturbem nossos hábitos de pensamento.

Houve, há e sempre haverá leitores que se veem encantados e transformados por uma verdade descoberta dentro de um livro de ficção, dentro de um livro que não simplesmente repete os clichês culturais. Houve, há e sempre haverá pessoas que abrem um livro, o leem e, ao chegarem à última página, descobrem que já não são quem eram quando começaram. E o livro viverá na memória do leitor, não palavra por palavra, não exatamente como foi escrito. Ele sofrerá mutações e transformações dentro da pessoa que o leu, como todas as memórias fazem, mas seu poder emocional permanecerá, e poderá moldar a imaginação da pessoa por anos a fio. O livro pode mudar as ideias e sentimentos do leitor sobre como o mundo funciona, e como ela ou ele escolhe viver nele.

—Traduzido e abreviado por Bernardo Lopes

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Hustvedt, Siri. Mothers, Fathers, and Others. Sceptre, 2022. ISBN: 1529376718

Bernardo Lopes

BERNARDO EVANGELISTA LOPES nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1988. Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é escritor e professor de Língua Inglesa. Seus livros "O que disse o Imperador" (2016), "Dona" (2018) e "Debutante" (2021) foram publicados pela Metanoia Editora, do Rio de Janeiro. "Dona" foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, assim como seu ensaio crítico-literário "O Narrador Injustiçado" ("The Underrated Narrator"); ambos são vendidos em mais de 20 países pela Amazon. Bernardo é o Presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, onde ocupa a cadeira de nº 17, que homenageia o conterrâneo Júlio Ribeiro.