Milky Chance

Outro dia vi um post no Instagram e corri pra sessão de comentários, onde encontrei o que, pra mim, é uma das grandes verdades sobre a indústria musical da atualidade:
“Exatamente”, eu repliquei.
Era sobre a Dido; mostrava um trecho dessa cantora inglesa apresentando ao vivo uma música que, se não for uma das mais lindas do mundo pop, certamente é uma das mais lindas da própria Dido: “White Flag”, que canta os arrefecentes mas ainda não derradeiros sentimentos de um adulto comum por outro adulto comum com quem não se consumou um amor por tanto tempo projetado.
Dá só uma olhada nessa letra: “Eu sei que você acha que / eu não deveria te amar até hoje / ou te dizer isso / Mas, se eu não dissesse, bem, eu continuaria sentindo / Qual é o sentido disso? / Prometo que não estou tentando dificultar sua vida / ou retornar para onde paramos”. E aí vem o refrão, tacando meio que o foda-se: “Mas eu vou afundar com esse navio / e não vou levantar minhas mãos e me render / Não vai ter nenhuma bandeira branca na minha porta / Eu estou apaixonada, e sempre estarei”.
Ela não para aí! “Eu sei que deixei muita bagunça e destruição / pra aparecer de novo / E não causei nada além de problemas / Eu entendo se você não quer falar comigo de novo / E se você vive sob as diretrizes de ‘o que acabou tá acabado’ / faz sentido demais.” E, pra terminar, ela dá uma última guinada antes de gritar o refrão final: “E quando a gente se encontrar, / como eu tenho certeza que vamos, / tudo que um dia esteve lá / ainda vai estar lá / Eu vou deixar passar / e segurar minha língua / E você vai achar / que eu segui em frente.”
Filha da puta! (= Maravilhosa!)
O comentário daquela moça no Instagram nunca fez tanto sentido! Talvez eu não procure nos lugares certos, e eu raramente procuro mesmo, mas a gente precisa realmente trazer de volta artistas que são só adultos normais com algo a dizer.
E, como a sorte às vezes bate à porta, o Spotify um tempinho atrás me ofereceu, numa dessas listas aleatórias, um raro acerto de “coisas que eu adoraria ouvir”. Não era só a letra, era também o som. Ou: não era só o som, era também a letra. Que dizia assim:
“Hoje à noite sou só eu, euzinho e eu mesmo,
Pelado e vivão da silva.”
Parece bobeira à primeira vista, eu sei, mas, dialogando com o que a internauta disse sobre a Dido no post mencionado acima, eu encontrei nessa banda que eu não conhecia — Milky Chance — o refúgio do meu adulto meio cansado, meio inspirado; meio ambicioso, meio querendo diminuir o ritmo; meio afetuoso, meio tentando se desapegar mas meio saudoso, e meio resignado também: ou seja, uma música gostosa que se conecta com os pequenos conflitos leves de pensamento e personalidade no às vezes insignificante pinball da nossa mente & coração ao lado da rotina, meio pastel e meio pastelão, de um adulto.
Nessa música em questão, “Naked and Alive”, a banda alemã — uma dupla, na verdade, que fez muito sucesso aqui no Brasil com “Stolen Dance”, que todo mundo conhece, e que canta em inglês — fala do prazer simples e tão sagrado de poder ficar sozinho em casa um dia “pelado e vivão da silva”, sem mais ninguém — admitindo que, é, as coisas mudaram por aqui e, por mais que doa dizer isso pra alguns amigos, e por mais que tenha doído admitir isso até pra mim mesmo, eu amo ter encontrado essa faceta do meu estilo de vida, mais de boaça em casa tomando minha cerveja e escutando minha música tranquilo. “Do que me serve lutar contra isso / quando no fundo eu sei que eu curto?” Tanto em tão pouco. O site Update or Die chamou a música de “um hino” de “celebração ao amor-próprio e à solitude” (um conceito maravilhoso que contrasta com o de “solidão”, que é ruim, enquanto a “solitude” é sobre curtir a própria companhia).
Como era de se esperar, fui procurar o último álbum deles, que, pra mim, é um achado: um punhado de músicas bem embaladas e com letras que ainda têm algo a dizer. (O site Genius descreve Milky Chance como “uma dupla folk alemã com influências de reggae e música eletrônica”, mas na maioria das canções eu sinto o envelopamento do pop, e isso sem nenhum demérito: é muito cativante — e pop é a maior parte do que escuto.)
Living In A Haze, o álbum, começa com a música de mesmo título, abordando a correria e ansiedade que envolvem a vida de adulto e fazem com que a gente se sinta vivendo num nevoeiro; ao nosso redor, nada é muito claro, a cabeça anuviada de problemas e um punhado de medos, enquanto você tenta seguir seu caminho e dar conta do seu corre. “Tô sem dormir já tem uns dias, não sei por quê / Tô vivendo numa névoa, que vida absurda”, e ele inveja quem leva uma vida livre, leve, sem muitas responsabilidades, só curtindo as ações e reações da vida mais descompromissada — talvez até como ele era quando era mais novo: “Eu queria ser tipo esses caras de boate, esses caras de boate / Andando pra lá e pra cá como se estivesse paranoico” — saudades de quando a vibe da bala ou do doce era o maior dos meus problemas — “Era pra eu estar dançando, era pra eu estar dançando até a noite acabar.” E as dúvidas que nos alcançam depois dos 30: “Sonhos na minha cabeça / Quão longe eu posso chegar? / Espero que não seja tarde demais pra minha vida decolar / Porque pra mim parece é que tá sendo ladeira abaixo”. “Quem dera eu fosse igual esses caras de boate. Era pra eu estar dançando, era pra eu estar dançando até a dor passar.”
A segunda música, “Golden”, parece relembrar, com honra e certo grau de saudosismo, os tempos áureos (de ouro, como diz o título) de um relacionamento ou de um grupo de amigos, que talvez ainda exista, mas que agora é diferente. “Por que não dá mais pra voltar naqueles tempos? / A gente ainda está aqui, mas não é a mesma coisa / Muita coisa se meteu no nosso caminho / Mas a gente se divertiu”. “Demos um show”, diz ele, “Deixar as regras pra lá era nossa especialidade / A gente saía junto todo dia. / [Mas] eu ainda sinto a presença de vocês / Tão preciosos / Só que fico pensando em como vocês me fazem me sentir / Tão precioso / Tão precioso agora.” “A gente segue aqui, na correria. / Me leva de volta” — acho que às vezes eu e meus amigos ainda buscamos (e por vezes encontramos), numa noite de bebedeira, nossa versão antiga; não que a gente não saia dela com uma ressaca brava e com um sentimento de culpa como se tivéssemos sido uns moleques de sair da linha como se ainda fôssemos jovens. Mas é como ele diz, com amor e respeito e aquele balançar de cabeça positivo em direção à nossa história construída nesses rolês e nessa relação: “Eu ainda estou aqui.” — não só o “nós”, mas o “eu” — [Somos] tão preciosos.”
Em “Purple Tiger”, minha favorita, uma baladinha saudosista que entristece de um jeito gostoso desde o início, e embala com um refrão em ritmo diferente, ele canta as delícias do sossego de uma boa companhia num início de relacionamento: “Me leve pra sua terra dos sonhos / Eu só quero ficar aqui o dia inteiro / ‘Me mostre como te amar’, eu diria”. Transcendentalmente simples; essa música é sem igual.
Na quarta faixa, “Colorado”, nome de um estado montanhoso dos Estados Unidos, ele brinca com as palavras ao dizer que fica “alto [chapado de bebida/droga] como Colorado”, mas traz boas reflexões sobre um relacionamento que acabou sem explicações bastantes e sobre a dificuldade de superar: cada dia é um dia, “viver um dia de cada vez” até passar — e vai ter dia que não vai funcionar: “A gente tinha tudo pra dar certo, / mas o que sei eu? / Tento afastar o sofrimento / Mas hoje já era: / Amanhã eu tento de novo.”
Algumas faixas mais tarde, a banda parece homenagear o som do grupo The Mamas & The Papas, do grande clássico “California Dreamin”, de 1967, com a introdução da música “Synchronize”, que depois cai pra um refrão dançantezinho pro qual dá vontade de fazer dancinha pro TikTok.
A melodia paranoica e baladinha-deprê de “Better Off” traz reflexões lindas, meio passivo-agressivas como a gente às vezes fica quando tá sofrendo, e sobre um relacionamento que tá indo por água abaixo, meio tóxico, com a possibilidade de o outro, não o eu-lírico, se salvar. “Sabe o que eu quero? / Que a gente encerre o passado / Os inimigos ficam, e eles deixam a gente doido / O que eu quero / é que a gente encerre o passado / Não tem outro jeito”, e ele diz pra amada: “Você está / bem melhor aqui sem mim. / Você está / bem melhor / Isso, sem dúvida / Porque eu não quero ficar te puxando pra baixo / Não quero mais te machucar / Você está / bem melhor [sem mim]”.
A atmosfera da música “Flicker in the Dark”, se o povo conhecer, vai grudar em todo mundo. Dá vontade de dançar no ritmo. A baladinha seguinte, “Clown” (com uma pegada inicial que lembra “Love Generation”), também traz essa leveza de ouvir música sem pensar, só sentindo a vibe, com uma letrinha simples que responde ao peso da de “Better off”: “Me deixa fazer umas palhaçadas / Não quero te deixar pra baixo nunca / Não quero te fazer chorar / Quero te fazer é sentir.” Sentir, e mais nada; se sentir viva porque “Você me faz bem.” E ele agradece e clama pra essas coisas darem certo em “Feeling for you”; porque agora, não tem jeito, ele está apaixonado mesmo; será que é pedir demais pras coisas darem certo? “Não quero perder tempo, pra mim nunca basta. / Estou começando a acreditar [no nosso relacionamento].”
Quanto mais fundo o álbum vai, mais TikTokável, eu sinto, as músicas ficam, no geral, o que pra mim mostra que eles estão prontos pra grudar na nossa cabeça. E entregando um bocado de conteúdo pessoal, o que é melhor!
Milky Chance ainda não tem previsões pra lançar seu novo álbum. Esses dias, lançaram uma versão acústica de “Naked and Alive” (lembrei da Lupe de Lupe), riquíssima, com uma sonoridade tão contraintuitiva, renovada, que abraça e arranha tantos gêneros, que eu achei inescapável: apaixonante. É assim que eu quero me sentir: na companhia de alguma coisa com que eu me sinta em casa, peladão e vivinho da silva.