Melhores do ano

Revelações sobre 2024: quase não vi filme nenhum; escutei um podcast atrás do outro sobre uma pessoa com quem me encantei (mencionei abaixo); desbanquei — talvez — The Affair do topo da minha lista de séries favoritas.
Segue minha lista de melhores séries, filmes e livros que consumi em 2024, entremeada por 3 personalidades que impactaram minha vida este ano.
Personalidade 1
Taffy Brodesser-Akner
Tudo começou num domingo entediado, comigo procurando aleatoriamente no catálogo do Star+ alguma coisa que parecesse ter qualidade de verdade. E achei: a série A Nova Vida de Toby. Fiquei tão impressionado com o quanto a história abraça o espírito do nosso tempo (o chamado zeitgeist) e pela escrita afiada, profunda e intensa sobre as dificuldades de ser adulto e as demandas da vida profissional, conjugal, parental e social — as quais podem doer em todo mundo, de qualquer classe social, mesmo que de jeitos diferentes — que eu tinha vontade de gritar, e às vezes gritava mesmo, ao final de alguns episódios. Pois bem: a série foi dirigida por Taffy Brodesser-Akner, escrita por Taffy Brodesser-Akner, produzida por Taffy Brodesser-Akner, e baseada em livro de Taffy Brodesser-Akner. E repito o nome aqui como ele tem se repetido no meu Spotify: a cada entrevista com essa mulher, me encanto mais por ela. Ela tem tanto a dizer sobre nossas gerações, sobre nosso lugar no mundo, a nossa forma de se ver e de tentar se encaixar e ser alguma coisa, em alguns lugares, em certas relações. Ouvir Taffy é um “bate-papo” riquíssimo constante. (Em breve pretendo escrever aqui nas Pílulas sobre ela e as coisas que ela fala!)
Séries
A Nova Vida de Toby
Como indicado acima, minha favorita de 2024. Seguindo um jovem médico assustado com a própria vida de classe alta, resultante tanto de sua carreira profissional quanto dos anseios de sua bem-sucedida ex-esposa, esta série mostra Toby retornando à vida de solteiro depois do divórcio, conhecendo o mundo de aplicativos de relacionamento e transando e se sentindo desejado como nunca antes. Ele divide a guarda dos dois filhos pré-adolescentes com ex-mulher, Rachel, uma produtora de teatro de Nova York workaholic como ninguém — que, num dia qualquer, simplesmente desaparece, sem deixar vestígios. Se ela está morta ou só tomou um chá de sumiço, a gente em breve descobre. Mas não sem antes entender um pouco mais sobre a relação conflituosa do casal antes do divórcio, e não sem antes conhecer outros personagens encantadores que vão nos fazer refletir sobre vários outros aspectos de nossa vida. E a pergunta que fica: quem, além de nós, deve contar nossas próprias histórias? A Nova Vida de Toby (Fleishman is in Trouble) está disponível na Disney+.
Reservation Dogs
Esta singela, esperta e apaixonantes série de apenas duas temporadas, com episódios de 30 minutos, conta a história de um grupo de amigos adolescentes de uma reserva indígena nos Estados Unidos. Após o suicídio de um deles (a taxa tem sido alta entre os nativos norte-americanos, como nos aponta o intelectual indígena N. Scott Momaday), os amigos tentam manter o plano inicial do grupo, que vem falhando há anos: largar uma vida limitada em sua comunidade (onde é fácil imaginar o futuro que os espera só de olhar para os adultos ao seu redor), e tentar a vida na Califórnia. Os episódios acompanham as tentativas dos amigos de juntar dinheiro e traçar rotas, em segredo, para realizar o plano de “fuga”, sem que seus pais e tios saibam — mas, como acontece com todo mundo, não vai ser fácil. Série ideal para quem quer se divertir com algo leve mas inteligente, e pra quem tem um grande sonho, mas se sente preso às circunstâncias atuais. Reservation Dogs está disponível na Disney+.
Bebê Rena
Sempre olho pras séries da Netflix com alguma suspeita, principalmente porque sabemos que eles se importam mais com o espetáculo de cores do que com a qualidade do conteúdo em si (enfim, indústria, indústria… não adianta muito reclamar!). Claro que temos exceções notáveis, como uma das melhores séries da minha vida, The AO, tão mágica e à frente do tempo que nem a Netflix aguentou, e acabou cancelando após a segunda temporada (sem a história terminar). Mas este ano tive mais uma surpresa boa: Bebê Rena, série sobre um homem, Donny Dunn, perseguido por uma mulher obcecada por ele, enquanto tudo que ele quer, ou acha que quer, é sair de sua vida comum e ser reconhecido como o artista de stand-up comedy que é. As coisas começam a sair do controle quando a moça, Martha, começa a ir mais e mais longe: mas o fato de Donny não conseguir pôr um ponto final nisso é muito mais complexo do que a gente imagina. Bebê Rena está disponível na Netflix.
Personalidade 2
Dalva Maria Soares
Escritora mineira de Belo Horizonte, Dalva é autora de Para diminuir a febre de sentir, Do Menino e Me ajuda a olhar!, três livros curtos e rápidos como três socos na cara, um depois do outro (e um mais maravilhoso que o outro). Este ano tive a chance de receber Dalva para um bate-papo com meus alunos da Oficina de Escrita Criativa que dei na Borrachalioteca, e saí transformado como não me sentia há anos. Dalva é uma maestra das linguagens e da percepção do protagonismo das mulheres e das pessoas pretas num mundo onde são, nos livros, nos filmes, no cotidiano, colocados como simples coadjuvantes. Uma voz de força e importância incalculáveis dos nossos tempos! E uma rainha! Tá aqui o @ dela.
Filmes
A Viagem de Pedro
Filme brasileiro com Cauã Reymond, com atuação espetacular (e um breve nude frontal, rs), no papel de D. Pedro I. A trama mostra um recorte de um período tenso da vida do príncipe — mas, surpresa boa!, com muito enfoque na perspectiva das mulheres e dos escravizados. Roteiro maravilhosamente escrito. Eu, sinceramente, queria ter escrito esse filme! Ritmado, contemplativo, sensível; e com um ar de novidade. Não é blockbuster pra agradar geral; é um filme que se valoriza. Disponível para aluguel no YouTube.
Pobres Criaturas
Como se falou por aí na Internet, o filme que Barbie poderia ter sido, mas não foi. Deliciosamente longo — numa época em que tudo é apressado, é bom se permitir curtir uma história de qualidade contada no seu próprio tempo —, Pobres Criaturas é uma divertida e reflexiva mensagem sobre como e o que somos, como bicho, gente e sociedade. Pobres de nós, criaturas humanas! De aplaudir de pé. Disponível no Disney+.
Anatomia de uma Queda
Um homem irritante aparece morto do lado de fora de casa, e não se sabe se ele caiu ou foi empurrado. Sua esposa é a maior suspeita; o filho, com deficiência visual, poderia ter sido, de alguma forma, testemunha, mas ele estava fora, passeando com o cachorro. Extremamente bem escrito, atuado e conduzido — e com um dos melhores bate-bocas de casal do cinema —, Anatomia de Uma Queda foi um dos melhores filmes do Oscar de 2024. Disponível no Prime Video.
Guerra Civil
Sou suspeitaço pra falar de Alex Garland, diretor desse filme, porque são deles alguns filmes que eu adoro — Ex Machina, Aniquilação, e a série Devs, uma das minhas favoritas —, mas Guerra Civil entrou pra lista de trabalhos pelos quais eu o admiro. Uma grande parábola da loucura sociopolítica dos nossos tempos! Uma explosão de às vezes nos fazer ranger os dentes. Wagner Moura tá um show. Disponível na Max.
Personalidade 3
José Falero
Escritor vindo da periferia de Porto Alegre, José Falero é uma grande voz da atualidade, e tá fazendo muita diferença na literatura nacional. Seu romance Os Supridores mostra a injustiça e desigualdade por trás de um sistema sob o qual vivemos diariamente, e, em seu livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?, cada texto é como se a gente levasse um soco e risse com o dente ensanguentado. Além do mais, assim como meus personagens falam em mineirês, os diálogos dos personagens de Falero — e até mesmo a voz narrativa de suas crônicas — são trabalhados em cima da oralidade. E vale a pena também procurar José Falero em entrevistas e podcast; ele tem muito a dizer, e nós, muito a escutar. Um querido! (Curiosidade: ele e a Dalva Maria Soares, mencionada acima, são namorados.) Tá aqui o @ dele.
Livros
O irmão alemão, de Chico Buarque
Tinha tempos que eu não sentava pra ler com tanto prazer. Depois de achar uma carta antiga no meio dos livros da casa, o jovem Ciccio descobre que o pai, a que tudo indica, teve uma amante do passado com quem gerou um filho — e Ciccio passa a procurar, à espreita, por esse irmão alemão. A forma como Chico Buarque constrói a narrativa de um homem de outros tempos com sinceridade e humor me surpreendeu demais; eu não tinha gostado de outros dois outros livros dele dos quais acabei desistindo. Já O Irmão Alemão eu quero reler muitas vezes ainda.
Homem em Queda, de Don Delillo
Um homem sobrevive à queda das Torres Gêmeas, em Nova York, no 11 de setembro de 2001. Na rua, coberto de pó, ele percebe que está com uma mala; e, quando chega em casa, percebe que a mala não é sua. Dias depois do evento traumático, ele busca a dona do objeto — que também sobreviveu. Com seu casamento ruído, sua vida abalada pelo trauma, o homem se afoga cada vez mais no marasmo e no vício. Só no final do livro vemos a cena, espetacular, de como ele conseguiu sair do prédio a tempo; mas o restante das páginas é um show de construção psicológica, dando forma de palavra a sentimentos nunca antes descritos, pelo menos não desse jeito, tão único, que Don Delillo constrói. Homem em Queda tem uma das cenas iniciais mais incríveis que vi nos últimos tempos e, particularmente pra mim, foi uma verdadeira aula de escrita. E com uma sacada genial sobre Osama Bin Laden!
Mas em que mundo tu vive?, José Falero
As crônicas de José Falero neste livro fazem a gente refletir e se assustar com a verdade de nossa realidade, sem perder o humor. Pra quem quer pensar, através de uma linguagem acessível, translúcida, lúcida e irretocável, sobre nossa vivência social no Brasil (e no mundo), e abrir os olhos, Mas em que mundo tu vive? é um presente maravilhoso pra gente e pros outros.
Um homem só, Christopher Isherwood
Essa história de um solitário professor idoso, viúvo do relacionamento com um parceiro que foi embora cedo demais, traz reflexões sensíveis sobre a vivência do homem gay. Além do mais, Um homem só é maravilhosamente bem escrito. Ler Christopher Isherwood foi um dos grandes prazeres deste ano. Dei esse livro de presente pra umas três pessoas.
Lembro-me, Joe Brainard
Espécie de autobiografia escrita em simples frases sem ordem cronológica, Lembro-me (I remember) é um tipo de livro que todo mundo devia escrever sobre a própria vida. Veja só:
Eu me lembro do quanto eu gaguejava.
Eu me lembro do quanto, no ensino médio, eu queria ser bonito e popular.
Eu me lembro da única vez que vi minha mãe chorar. Eu estava comendo torta de damasco.
Eu me lembro de quando decidi ser pastor. Não me lembro de quando decidi não ser.
Eu me lembro de quando a poliomielite era a pior coisa do mundo.
Eu me lembro do professor de história americana que sempre dizia que ia pular da janela se a gente não ficasse quieto. (Segundo andar.)
Eu me lembro de ter planejado arrancar a página 48 de cada livro que eu lia na biblioteca pública de Boston, mas de logo perder o interesse.
Eu me lembro de quando meu pai dizia “Tire as mãos de debaixo das cobertas” ao me dar boa-noite na hora de dormir. Mas ele dizia isso de uma maneira gentil.
Escrevi um texto falando mais sobre o trabalho de Joe Brainard no blog da Academia de Ciências e Letras de Sabará (clica aqui pra ler de graça), e também lancei em forma de e-book (clica aqui pra ler no Kindle).
Taipi: Paraíso de Canibais, Herman Melville
Um bocado de gente sabe que Moby Dick é um dos meus livros favoritos. E esse ano tive o prazer de parar tudo e voltar a ler algo do mesmo autor, Herman Melville. E que delícia que foi isso! Tanto Moby Dick quanto Taipi têm o mesmo contexto histórico: a época em que os cachalotes (aquelas baleias testudas) eram caçados pra se retirar da cabeça deles um óleo usado pra iluminação pública das ruas, quando a eletricidade ainda não era uma opção. Taipi é a história de um marinheiro gente-boa que, ao perceber que o capitão do navio em que trabalha tá de sacanagem com todo mundo, marrando comida, decide “fugir” pro meio do mato assim que o barco parasse numa ilha. Ele percebe no olhar de um companheiro de bordo que ele não é o único com essa ideia, que podia lhes custar a vida. Assim que pisam na ilha, os dois dão o olé nos outros tripulantes — naquela época, desertar o navio era crime — e se embrenham nas matas selvagens. São encontrados e, estranhamente, acolhidos por uma tribo tida como canibal, mas não dá pra saber se os nativos pretendem ou não se alimentar deles — é uma tensa, pessoal, engraçada e sensível ao mesmo tempo. As descrições dos visuais e dos comportamentos, assim como do psicológico e emocional dos personagens, são primorosas, como é de praxe em Melville. Sem contar no humor! No meu texto O Narrador Injustiçado, protestei sobre o quanto se fala pouco sobre o fato de Moby Dick ser uma narrativa por vezes hilária; e Taipi, igualmente, é um livro que fala sério, mas sem deixar de nos divertir, com um humor de primeira, às vezes escancarado, às vezes sutil, que arranca as mais inesperadas gargalhadas.