Introdução de “The Fall of Valor”, de…
14 de abril de 2025
Post por: bernardolopes

Introdução de “The Fall of Valor”, de Charles Jackson

Você ainda lê as Introduções no início dos livros? Pulei muito, durante minha adolescência; hoje vejo nelas um prazer único, como se fossem um livro por si só. Algumas ainda erram em entregar demais sobre a história, mas outras se salvam desse desrespeito: e a de Michael Bronski para The Fall of Valor, maravilhoso romance de Charles Jackson ainda não traduzido pro Brasil, é uma delas.

Traduzi aqui pra gente, porque tem texto que não dá pra deixar passar!

Introdução

Os leitores contemporâneos conhecem o romance de Charles Jackson, The Fall of Valor[1], de 1946 — se é que o conhecem — pela icônica capa da edição original da Signet, publicada em 1949. A imagem — hoje amplamente encontrada em ímãs de geladeira e como ilustração em livros de literatura “pulp” com temática queer —, segue o estilo do grande artista capista James Avati, que definiu a arte de capas de livros de bolso e brochura nas décadas de 1940 e 1950. Em primeiro plano está uma mulher atraente de ombros nus e cabelos ruivos, e com uma aliança proeminente no dedo, segurando um par de óculos escuros. Os olhos dela estão voltados para a esquerda enquanto ela sub-repticiamente observa dois homens. Um jovem homem loiro, de sunga amarela justa e roupão de praia vermelho, acende o cigarro de um homem um pouco mais velho, de peito nu e calção mais folgado. A expressão de ansiedade e pavor no rosto da mulher se justapõe de maneira tensa ao erotismo implícito entre os homens atrás dela. A narrativa da imagem não poderia ser mais clara. Mas, para não deixar dúvidas, o texto na faixa amarela reluzente na parte superior da capa diz: A Poderosa História dos Amores Conflitantes de um Homem.

Hoje em dia, as pessoas costumam se surpreender com o fato de a capa de um livro de 1949 — vendido abertamente em bancas de jornal, prateleiras de farmácias e em rodoviárias e estações de trem — poder ser tão declaradamente gay. Mas, no mundo da ficção literária do pós-guerra, a temática homossexual masculina — particularmente quando ligada a aspectos polêmicos que relacionavam masculinidade à Primeira Guerra Mundial — era muito recorrente. Ela está presente em romances best-sellers como Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer, de 1948, e A Um Passo da Eternidade, de James Jones, de 1951, mas também em romances como Reflexos num Olho Dourado, de Carson McCullers, de 1947, The Gallery (A Galeria, sem tradução para o português), de John Horne Burns, de 1947, End as a man (Morra como um homem, também  ainda inédito no Brasil), de Calder Willingham, de 1947, e A Cidade e o Pilar, de Gore Vidal, de 1948, que se tornou o mais notório entre esses novos romances com temática gay declarada e, por vezes, simpatia e apoio à causa.

Em retrospecto — décadas depois —, é evidente que esses romances se referiam a uma cultura da década de 1940, mergulhada na guerra, na qual as normas e expectativas norte-americanas tradicionais sobre masculinidade, heterossexualidade, relacionamentos sexuais, papéis de gênero e até mesmo casamento eram questionadas, e diversas alternativas exploradas. As mulheres no front doméstico agora assumiam novas responsabilidades sociais e econômicas, e as relações eram desestabilizados por milhões de homens que iam para o além-mar lutar na guerra. Mais importante ainda, homens em meio à batalha, muitas vezes enfrentando a possibilidade real da morte, tinham que recorrer uns aos outros em busca de apoio emocional e, muitas vezes, intimidade física, sexual ou não. A ideia, e o ideal, de que os homens deveriam ser emocionalmente contidos, nunca fisicamente carinhosos uns com os outros, fortes e firmes (além de, é claro, exclusivamente heterossexuais, emocional e fisicamente) foi rompido pelas enormes, e ameaçadoras, realidades da guerra. Não é de se admirar que leitores norte-americanos de ficção literária tenham sido atraídos por temas que exploravam novas maneiras de ser um homem no mundo.

The Fall of Valor se encaixa clara e perfeitamente nesse gênero de livros do pós-guerra sobre masculinidade e queeridade. Mas é também completamente único. Quando The Fall of Valor foi publicado em 1946, Charles Jackson já era internacionalmente famoso — Mailer, Vidal, Jones e outros que lidavam com a homossexualidade em suas obras estavam apenas começando suas carreiras — após a publicação de seu primeiro romance, Farrapo Humano (The Lost Weekend), em 1944. Farrapo Humano, um romance comovente sobre o alcoolismo de um homossexual enrustido, vendeu, durante a vida de Jackson, mais de 100.000 cópias de sua primeira edição de capa dura com revestimento em tecido, meio milhão de cópias no formato tradicional (brochura), e foi traduzido para quatorze idiomas. (Seu título também se tornou uma expressão popular na língua inglesa.) Um filme baseado no romance foi lançado em 1945 e ganhou quatro Oscars, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Ator, e arrecadou mais de US$ 1.000.000 nas bilheterias.

Uma exploração ficcional séria do alcoolismo era considerada ousada na época, mas, para Jackson, lançar na sequência um romance sobre um professor universitário casado lutando contra sua atração por homens — e sua intensa atração por um belo capitão da Marinha que conhece nas férias — era certamente romper barreiras, mesmo com o substancial interesse do público por questões de sexualidade e masculinidade na época. O que diferencia The Fall of Valor de muitas dessas outras obras é que, além de ser “a poderosa história dos amores conflitantes de um homem”, é também a história psicológica muito moderna de um casamento que vem morrendo lentamente há anos, sendo a sexualidade do marido uma parte muito pequena disso. O que Jackson faz aqui — com uma percepção psicológica penetrante e um instinto desestabilizador para expor a crueza das emoções humanas — é equilibrar perfeitamente a história de um casamento estagnado com a euforia de um homem experimentando a primeira onda de excitação sexual e emocional.

O casamento de John e Ethel Grandin se afastou drasticamente do que era em seu início feliz, e agora eles passam “mal mal uma dúzia de noites juntos por mês”. Ele é obcecado por seus livros e escritos, ela tem se tornado cada vez mais amargurada com a inatenção dele e se lembra com carinho de como seus primeiros atos sexuais lhe permitiram “pela primeira vez na vida [se] tornar ela mesma: viva, consciente, confiante”. Mas, com o tempo e os dois filhos, “os prazeres do amor logo se transformaram nos prazeres mais sólidos do casamento”. Em férias em Nantucket para reanimar o casamento, os Grandins conhecem Cliff Hauman e sua nova esposa Billie, que estão em lua de mel. Cliff, um capitão da Marinha, é “um gigante, com 1,98 ou 1,99 metro de altura, e robusto: ombros enormes, cabeça grande, cabelos loiros e cacheados, olhos azuis — o atleta, o ídolo norte-americano, desinteressante”. Para John, é obsessão à primeira vista, e ele começa a idealizar Cliff — que paira em sua mente como uma representação de uma masculinidade icônica e heroica — ao longo de suas leituras de Walt Whitman e A. E. Housman, comparando-o emocionalmente a Aquiles, Heitor, Jasão e Siegfried.

Jackson é meticuloso aqui ao mapear não apenas o crescente fascínio de John por Cliff, mas também a confusão emocional de Ethel e, mais importante, a ambivalência do claramente heterossexual Cliff enquanto ele flerta com John, contando-lhe histórias de sexo a três com uma mulher e outro fuzileiro naval, sua “conclusão natural de que homens devem ficar perto de homens e mulheres de mulheres” e, apesar das objeções estrênuas de John, passando protetor solar nas costas do professor quando estão na praia.

A genialidade de Jackson reside no fato de ele conseguir navegar, e situar, a complexidade erótica desse triângulo bem no centro da crise de masculinidade e morte da guerra. Os personagens continuam olhando reportagens e fotos de militares mortos na revista Life, Cliff fala sobre a guerra, John se preocupa em ser 4-F[2] e não poder lutar, até mesmo os heróis míticos que John associa a Cliff são todos guerreiros. O que Jackson entende tão bem é que o mundo dos Grandins e Cliff — e talvez a nação dos Estados Unidos inteira — está vivendo em uma viagem onírica de guerra e morte.

É uma visão perturbadora sobre o amor, o sexo e os Estados Unidos, especialmente porque foi escrito no final da Segunda Guerra Mundial, quando essas feridas, memórias e emoções mal haviam começado a cicatrizar. Mas o público leitor norte-americano parecia pronto para o livro. Thomas Mann o elogiou calorosamente — “É um livro corajoso e implacavelmente investigativo, que revela, sem nenhum traço de frivolidade especulativa, as dificuldades, os constrangimentos e os medos da vida conjugal e sexual” — As resenhas foram geralmente positivas e, de acordo com a biografia de Jackson escrita por Blake Bailey, Farther and Wilder: The Lost Weekends and Literary Dreams of Charles Jackson (2013), vendeu 75.000 cópias em capa dura e 291.000 cópias tradicionais. Vários contratos de filmes foram discutidos, mas, devido ao conteúdo homossexual, nada aconteceu.

Charles Jackson — apesar de ter sido um artista brilhante — levou uma vida triste. O alcoolismo crônico e o vício em Seconal rapidamente começaram a prejudicar sua capacidade de escrever. Ele ingressou nos AA, consultou-se com psicanalistas, tentou suicídio várias vezes, entrou em clínicas de reabilitação, sofreu de doença pulmonar obstrutiva crônica devido ao tabagismo excessivo, e possivelmente era bipolar. Assim como John Grandin, ele era casado e tinha dois filhos, mas era homossexual — e de forma bastante assumida em suas últimas décadas, embora nunca tenha conseguido encontrar homens que pudessem se encaixar em sua vida. Ele e sua esposa Rhoda (que era comprometida a ele como pessoa e como artista) se separaram e ele teve uma série de companheiros, incluindo, durante o último ano de sua vida, o fiel Stanley Zednik, um emigrante tcheco vinte anos mais novo que ele, que o salvou de várias tentativas de suicídio. Jackson morreu em sua última tentativa, em 1968, aos 65 anos.

The Lost Weekend e The Fall of Valor são claramente, em partes, autobiográficos. Mas essas obras realmente não nos dizem muito sobre a vida de Jackson ou por que motivo ele foi, após sua morte, praticamente esquecido como um grande romancista norte-americano. A escrita de Jackson é tão envolvente, valente e comovente hoje quanto era durante sua vida. Enquanto outros escritores — gays e heterossexuais — de temática homossexual, como James Baldwin, Norman Mailer, Gore Vidal e Calder Willingham, seguiram carreiras longas e plenamente realizadas e são lembrados até hoje, Jackson — apesar de ter sido tão famoso nas décadas de 1940 e 1950 — desvaneceu-se. É irônico que, em muitos aspectos, The Fall of Valor tenha sido pioneiro no romance norte-americano ao lidar com esses temas de sexualidade, morte, guerra e masculinidade, e agora tenha caído no esquecimento, enquanto Os Nus e os Mortos, A Um Passo da Eternidade e A Cidade e o Pilar são conhecidos hoje. Esta nova edição apresentará este romance, e também Charles Jackson, a uma nova geração de leitores.

[1] Nota de Bernardo Lopes: A palavra valor em inglês significa grande valentia, coragem, mas se refere muito, também, ao valor no sentido da noção antiga de heroísmo e masculinidade. Por isso, é fácil ser ambivalente na escolha de um título para o português: A Queda da Coragem, O Declínio da Honra e A Derrocada da Valentia são possibilidades, mas também outras parecem tocar mais diretamente na veia da homossexualidade vista como uma espécie de “desonra à masculinidade” (na época e, ainda um tanto, nos dias hoje): A Perda do Valor, O Fim da Virtude, A Ruína do Valor, são algumas opções. Essas últimas dialogam mais com a citação de Moby Dick de que o livro tira seu título, transcrita como epígrafe nas primeiras páginas de The Fall of Valor: “Mas viesse a narrativa seguinte a revelar, em qualquer instância, o completo aviltamento da fortaleza do pobre Starbuck, eu mal teria coragem de escrevê-la; pois a coisa mais dolorosa, para não dizer repugnante, é expor a queda do valor de uma alma. Os homens podem parecer detestáveis em suas sociedades comerciais ou países; velhacos, parvos e assassinos podem existir entre eles; homens podem ter rostos maus e mesquinhos; mas o homem, no ideal, é tão nobre e tão esplêndido, é criatura tão grandiosa e reluzente, que diante de qualquer ignomínia que venha a maculá-lo todos os seus semelhantes acorrerão para cobri-lo com seus mantos mais valiosos. A imaculada virilidade que sentimos dentro de nós, profundamente em nós, que permanece intacta, mesmo quando toda a personalidade exterior parece nos haver abandonado; ela sangra com o sofrimento mais agudo perante o espetáculo da ruína de um homem de valor.” (Trecho da tradução de Moby Dick de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, publicada pela COSACNAIFY.)

[2] Nota de Bernardo Lopes: No contexto de guerra, a classificação 4-F é usada pelo Sistema de Serviço Seletivo dos Estados Unidos para identificar pessoas consideradas inaptas para cumprir o serviço militar. Essa avaliação geralmente leva em conta critérios físicos, mentais ou morais que tornam o indivíduo inelegível para servir nas forças armadas.

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Jackson, Charles. The Fall of Valor. Valancourt Books, 2016. ISBN: 1943910480.

 

 

Bernardo Lopes

BERNARDO EVANGELISTA LOPES nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1988. Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é escritor e professor de Língua Inglesa. Seus livros "O que disse o Imperador" (2016), "Dona" (2018) e "Debutante" (2021) foram publicados pela Metanoia Editora, do Rio de Janeiro. "Dona" foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, assim como seu ensaio crítico-literário "O Narrador Injustiçado" ("The Underrated Narrator"); ambos são vendidos em mais de 20 países pela Amazon. Bernardo é o Presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, onde ocupa a cadeira de nº 17, que homenageia o conterrâneo Júlio Ribeiro.