Entrevista à FOLHA de 31/07/24
6 de agosto de 2024
Post por: bernardolopes

Entrevista à FOLHA de 31/07/24

Leia na íntegra a entrevista dada por Bernardo Lopes ao jornal FOLHA DE SABARÁ no dia 31 de julho, 2024, sobre o lançamento do livro CANÇÃO LÓGICA: 1ª TEMPORADA.

FOLHA DE SABARÁ: O que o inspirou a escrever Canção Lógica? Existe alguma experiência pessoal que influenciou a história?

BERNARDO LOPES: Eu escrevi uma história muitos anos atrás sobre um casal que tinha adotado uma criança e que enfrentava alguns problemas com a escola do filho adotivo. Esses três personagens nunca saíram da minha cabeça, e por anos fiquei imaginando e rascunhando outras versões deles, aprimorando uma narrativa para eles. Só consegui dar vida a uma versão mais definitiva da história quando, com um relacionamento que tive há cerca de 9 anos, entendi as dificuldades enfrentadas por um casal que se ama, mas que não se entende. Foi nisso que encontrei um novo ponto central para a história, bastante diferente da ideia inicial. Aquele meu relacionamento não durou muito, mas deixou várias inspirações para reconstruir aqueles meus personagens antigos e, quando eu vi, Canção Lógica enfim tinha encontrado um universo.

FOLHA DE SABARÁ: Como foi o processo de criar um romance em formato de série de TV? Quais desafios e oportunidades você encontrou nesse estilo inovador?

BERNARDO LOPES: Quando comecei a escrever a história, em 2017, as séries de TV ainda não eram essa febre que são hoje, mas já faziam parte da minha vida. Canção Lógica só me vinha à cabeça nesse formato, influenciado pelo que eu assistia. Tentei várias vezes escrevê-la em forma de conto, em prosa, mas não funcionava. Sempre fui de ler roteiros de TV, então comecei a arriscar contar a história em forma de script, e descobri que assim ela fluía. O bom de escrever nesse formato é que não há muito apego à questão estética da linguagem, você não precisa ficar se perguntando a cada momento se a maneira como você constrói uma frase está causando impacto: a dinâmica é mais focada no diálogo, o que torna tudo mais dinâmico e leve. Para mim, que sempre escrevi no formato literário clássico, o desafio é que às vezes a gente quer descrever por longos momentos o que os personagens estão sentindo e vivendo. Isso é lindo, mas não cabe no formato de série de TV. Aqui, você mais mostra do que explica. Os personagens trabalham muito mais que o narrador.

FOLHA DE SABARÁ: A crise de estresse do protagonista, que afeta sua memória, é um elemento central do enredo. Como você explorou essa temática e o que ela simboliza para você?

BERNARDO LOPES: Plínio, o protagonista, sofre uma “amnésia dissociativa”, também chamada de “amnésia psicogênica”, que pode ser provocada por algum transtorno de ansiedade ou por estresse e, em casos mais graves que o dele, por eventos traumáticos. Plínio acorda certo dia sem saber quem é e onde está, mas sua família imediatamente o acolhe. Uma das características da amnésia dissociativa é que geralmente as lembranças vão voltando em questões de dias, horas ou semanas. O dilema da história é muito mais o que a perda de memória vai levar Plínio a entender sobre sua vida quando as lembranças começam a voltar. Ele está feliz? Fez as escolhas certas? Está no caminho certo? Sua amnésia é muito mais um ponto de partida para ele reavaliar o estado das coisas e se perguntar se há algo que pode fazer por si mesmo.

FOLHA DE SABARÁ: No livro, a família do protagonista tenta poupá-lo de tomar uma decisão arriscada. Como você construiu as dinâmicas familiares no romance, e qual é a importância delas na narrativa?

BERNARDO LOPES: A questão familiar é sempre o mais gostoso para mim, porque amo escrever sobre as relações sensíveis e tão variáveis que temos com quem amamos. A família de Plínio não é perfeita, quem dirá ele, mas é evidente o amor por baixo de tudo, um medo de ver o outro sofrer e de às vezes perder o parente amado para uma decisão que pode ser agradável para ele, mas que afetaria todo o grupo. Plínio é um homem cheio de sonhos, que nunca parece satisfeito, e a família talvez esteja tentando mostrar para ele que ele já tem o que precisa. Mas ele é osso duro de roer.

FOLHA DE SABARÁ: Você menciona que o protagonista esconde algo. Pode nos dar uma ideia do mistério que permeia a trama e como ele afeta a evolução dos personagens?

BERNARDO LOPES: Plínio também está redescobrindo as coisas e, nessa “arrumação”, ele vai ver que pode ter feito algo que afeta diretamente seu casamento. Às vezes, para fugir de certas responsabilidades, as pessoas cultivam outros problemas que, se explodirem primeiro, fica menos feio para elas. Tudo isso pode ser consciente ou inconsciente. Num determinado momento, não dá para ter certeza de tudo que Plínio lembra, o que, teoricamente, poderia acabar lhe dando a chance de manipular as coisas a seu favor e, quem sabe, se libertar de alguns fardos.

FOLHA DE SABARÁ: O formato de série de TV é uma escolha incomum para um romance. Como você decidiu adotar essa estrutura e o que ela acrescenta à narrativa?

BERNARDO LOPES: Minha ideia inicial era que, se a história só vinha na minha cabeça em forma de série e eu não conseguia escrevê-la de nenhum outro jeito, a melhor opção era ter os episódios escritos para caso futuramente eu tivesse uma oportunidade de tê-los produzidos para a TV. Mas, à medida que os episódios foram sendo escritos, eu vi neles um potencial para extrapolar o gênero de roteiro também, então em vários momentos eu deixo o romancista dar as caras e falar coisas que a gente leria num livro, mas nunca num script. Isso faz com que Canção Lógica atenda a duas demandas: que seja um livro gostoso de ler, mas que também possa ser matéria-prima para uma futura produção de televisão ou de streaming. Os dois elementos convivem bem.

FOLHA DE SABARÁ: Cada “episódio” ou capítulo tem uma estrutura específica? Como você manteve o ritmo e a tensão ao longo do livro?

BERNARDO LOPES: A história começa de um jeito clássico, com Plínio acordando sem memória. Dali em diante, enquanto vemos o desenrolar familiar desse problema, cada episódio é entrecortado por dois flashbacks de quando o relacionamento amoroso começou: o encontro marcado pelo Tinder, acontecimentos de um namoro cheio de inseguranças e despreparo emocional, elementos que vão explicando, pouco a pouco, a base mal estruturada em que aquele casamento se firmou. Os flashbacks dão informações vitais sobre o tempo atual da narrativa, além de terem uma energia diferente. Dá vontade de abraçar os personagens ou até de ajudá-los a ir resolvendo algumas questões desde cedo. Mas, assim como na vida, isso não é possível. A partir do quarto capítulo, algo muda na regra interna dos episódios.

FOLHA DE SABARÁ: O título Canção Lógica é intrigante. Qual é o significado por trás dele, e como ele se relaciona com o tema do livro?

BERNARDO LOPES: As duas palavras do título soam um tanto contraditórias entre si, já de cara. E esse contraste pode ser sentido nos protagonistas. Além do mais, tem uma música de 1979 do Supertramp, “The Logical Song”, título do livro em inglês, que expressa bastante o conflito que atinge muitos de nós depois que passamos da marca dos 30 anos de idade. A música começa com “Quando eu era jovem, a vida parecia tão maravilhosa, um milagre, oh, era linda, mágica…” e vai mostrando o quanto, com o tempo, o mundo vai tentando fazer de todos nós uma mesma coisa, protocolar, sem brilho, sem espontaneidade. Uma das grandes questões do livro é essa: será que somos aquilo que, quando jovens, sempre sonhamos em ser e o mundo é que está tentando nos privar disso, ou somos o que nos tornamos, e nossos sonhos não cabem na realidade? O contraste entre expectativa e realidade pode parecer às vezes muito injusto e muito incômodo.

FOLHA DE SABARÁ: Como tem sido a recepção inicial ao livro entre seus colegas da Academia de Ciências e Letras de Sabará?

BERNARDO LOPES: Eu estou impressionado com a recepção. Quando decidir tirar a poeira de Canção Lógica e retrabalhar na versão de 2017 para lançar, eu sentia que era meu livro favorito entre os que escrevi, mas não imaginava que o retorno dos leitores viria tão forte, principalmente porque é um romance que se aventura no estilo, e foi maravilhoso ver o quanto as pessoas se adaptam num piscar de olhos. Algumas das respostas que eu ouvi são: “é a sua obra-prima”, “ninguém faz o que você faz e do jeito que você faz”, “é divertido, apaixonante, tocante, com personagens encantadores, riqueza de detalhes impressionante”. Não memorizei tudo que foi dito, mas sei que é um ótimo começo. Este é só o primeiro livro de três, ainda virão duas novas “temporadas” para a história evoluir e depois se fechar. Mas é maravilhoso ver que ela está mais viva do que nunca.

FOLHA DE SABARÁ: Quais são suas expectativas para o lançamento do livro? Você já tem planos para sessões de autógrafos ou eventos de divulgação?

BERNARDO LOPES: Sim, o lançamento aqui em Sabará acontece dia 10 de agosto, sábado, às 15h, lá na Biblioteca Pública Professor Joaquim Sepúlveda, na R. da República, 58, no Centro Histórico, pertinho do Chafariz do Kaquende. Lá, Canção Lógica será vendido, assim como meus livros anteriores, e vou autografar os exemplares. Alguns dias depois, teremos o lançamento em São Paulo, numa livraria charmosíssima da capital paulista.

FOLHA DE SABARÁ: Você já está trabalhando em novos projetos literários? Podemos esperar algo diferente ou seguirá explorando essa abordagem de narrativa inovadora?

BERNARDO LOPES: Canção Lógica foi planejado para ter três temporadas. Esta é a primeira, e estou trabalhando na segunda agora, que, assim como a terceira, já tinha várias cenas escritas desde 2017. Estou construindo o que acontece com os nossos personagens após o final da temporada um, plantando novos mistérios, dissolvendo outros, e resolvendo questões antigas que os protagonistas enfim vão ter que encarar, queiram ou não. Se tudo der certo, a segunda temporada sai ano que vem. Vamos torcer.

FOLHA DE SABARÁ: Como o processo de escrita desse livro influenciou sua própria vida? Alguma lição ou insight surgiu durante a criação de Canção Lógica?

BERNARDO LOPES: Canção Lógica foi uma revisitação importante em dois sentidos principais. Primeiro porque eu descobri algo bom que eu tinha escrito há quase uma década. Um jovem escritor passa tanto tempo questionando seu próprio talento, mas agora a versão mais madura de mim está muito feliz e orgulhosa com os personagens e a base narrativa que construí na época. O segundo sentido é que eu identifiquei vários padrões e visões limitantes sobre questões amorosas que eu carregava e que a gente tem que tomar cuidado para afastar e eliminar, senão vira uma bola de neve. Este livro foi uma chance de eu ver o tipo de situação em que meus personagens se colocam e que eu não quero para mim. Um ponto de partida para enxergar as coisas e agir de maneiras diferentes. Todo mundo erra, dá bola fora, mas eu deixo para Plínio e meus outros personagens as decisões mais erradas, e aí eles que sofram as consequências. Fazer ficção é um exercício interessante de viver algo sem estar realmente ali.

FOLHA DE SABARÁ: O que você gostaria que os leitores levassem consigo ao terminar de ler Canção Lógica?

BERNARDO LOPES: O que eu mesmo busco nos livros que leio: alívio, conforto e entendimento para nossos erros, dificuldades e limitações. Quero que você veja o contrário do que as redes sociais te mostram: a vida não é perfeita, você tem suas carências, você pisa na bola, amar é difícil, você é humano, e está tudo bem. As antigas tragédias gregas eram representadas de forma que as pessoas se vissem refletidas nos personagens e nos erros deles e encontrassem alívio para suas próprias questões, “ah, não sou só eu que meto tanto os pés pelas mãos”. As redes sociais são o oposto: nos afastam da nossa real condição humana e nos fazem nos sentir inadequados. Quero que minha literatura faça o contrário disso, como as tragédias gregas faziam: que ela mostre que, mesmo sendo quem você é, você tem um lugar no mundo. Não estamos sozinhos, e a literatura é a maior prova disso.

FOLHA DE SABARÁ: Sendo um membro da Academia de Ciências e Letras de Sabará, como você vê o papel da literatura na cultura local e o que espera contribuir com este novo trabalho?

BERNARDO LOPES: Já virou lugar-comum falar que Sabará tem tanto talento escondido, porque tem mesmo, e aposto que esses talentos escondidos não aguentam mais não ser aderidos pelo público de fora da cidade. Não só a literatura, mas a música, a pintura e as artes cênicas, para citar apenas alguns, têm verdadeiros expoentes aqui, mas tem sido desafiador fazer nossa estrela brilhar em outros lugares. Talvez o grande desafio seja descobrir como transpor os morros que cercam Sabará. Eu acredito numa certa universalidade temática. Nós sabarenses somos muito peculiares em vários sentidos, veja só como somos diferentes dos belo-horizontinos mesmo estando tão perto, mas também somos universais, e nossa literatura, eu sinto, precisa mostrar isso. Assim como Guimarães Rosa mostrou que o sertão é o mundo, quero que a gente mostre que Sabará é o mundo também. Fazer as pessoas de fora olharem para cá talvez nos ajude a romper esse campo de força misterioso que parece separar nossa arte do resto do mundo. Mas como fazer isso continua sendo uma grande questão.

 

A matéria publicada pela Folha pode ser lida aqui:

https://folhadesabara.com.br/noticia/37158/lancamento-de-qcancao-logicaq-consagra-bernardo-lopes-como-novo-talento-literario-do-brasil

Bernardo Lopes

BERNARDO EVANGELISTA LOPES nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1988. Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é escritor e professor de Língua Inglesa. Seus livros "O que disse o Imperador" (2016), "Dona" (2018) e "Debutante" (2021) foram publicados pela Metanoia Editora, do Rio de Janeiro. "Dona" foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, assim como seu ensaio crítico-literário "O Narrador Injustiçado" ("The Underrated Narrator"); ambos são vendidos em mais de 20 países pela Amazon. Bernardo é o Presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, onde ocupa a cadeira de nº 17, que homenageia o conterrâneo Júlio Ribeiro.