E lá se vai o Circo…

Ontem fiquei sabendo que o circo que tá aqui em Sabará já vai embora depois deste fim de semana.
Comentei com alguém outro dia que avistar o circo de alguns lugares — do semáforo no fim da rua Dom Pedro; da descida da Mário Machado; da ponte da Paciência — me traz uma sensação tão boa, como se a cidade, de alguma forma, estivesse sendo (com o perdão do pieguismo) agraciada.
Essa imponência da lona, o varal de luzes à noite — ir, que é bom, eu não fui, não animo o programa, mas me encanto de pensar que, pra além do público, há quem viva disso, uma equipe meio família que viaja por diferentes cidades, vive a cultura local ali, cultiva memórias com a plateia, depois parte. (Há um quê de romantização nessa visão minha, é claro, mas não consigo negar uma aura meio mística que o circo itinerante carrega no meu imaginário.)
Numa entrevista que dei recentemente ao podcast Pod Ler e Escrever, do meu querido amigo Juliano Loureiro, falei sobre o quanto, mesmo escrevendo as Pílulas aqui no site semanalmente, o hábito de escrever ficção (em especial a segunda temporada de Canção Lógica, que precisou ser interrompida momentaneamente devido à adaptação de Debutante pro cinema) — o velho hábito de escrever ficção, de me debruçar em criar histórias, desenvolver personagens, testar meu estilo, brincar com a narrativa, me faz falta demais. Mesmo escrevendo toda semana, se não escrevo ficção por um tempo, meu corpo, minha mente, eles sentem — posso até não perceber isso de cara, mas, depois de algumas semanas, o efeito é evidente. O mundo fica meio acabrunhado.
E o circo me conecta muito com alguém que me deu uma verdadeira aula sobre estilo e sobre escrita. Mas, primeiro, um detalhe:
O fato de meus personagens falarem mineirês, do jeitinho como percebo a gente falando em Minas, e mais especificamente o mineirês sabarense, não vem do nada. Reproduzir nos diálogos o jeito como se fala na vida real foi uma coisa que chamou minha atenção lá em 2010, quando comecei a estudar literatura norte-americana na faculdade. Me deparei com o romance Ratos e homens, do John Steinbeck (aliás, naquele ano, li muitos bons livros que mudaram pra sempre meu jeito de escrever).
Os personagens dessa história de Steinbeck são dois trabalhadores migrantes, um deles neurodivergente inclusive, cruzando cidades dos Estados Unidos durante a Grande Depressão, em busca de trabalho e sustento. Eles conversam numa linguagem cheia de gírias & muito característica dos trabalhadores rurais da década de 30 nas fazendas da Califórnia, pessoas sem educação formal, que Steinbeck conheceu de perto quando pegou no batente com eles.
Ali ficou decidido pra mim: meus personagens falariam como a gente fala: comendo sílabas, juntando palavras, enxertando gírias. Poucos anos depois, lancei O que disse o Imperador, minha primeira experiência literária a carregar essa característica. Com o tempo, fui aprimorando minha técnica, testando outras formas de representar essas marcas de oralidade de maneira fidedigna, divertida quando precisasse, mas feita a sério, na intenção, inclusive, de deixar um registro de como falamos hoje no meu local de origem.
Debutante, minha peça de teatro que agora tá virando filme, foi, não por acaso, o trabalho em que mais levei esse traço ao extremo.
Quando Canção Lógica: Primeira Temporada foi lido por uma equipe técnica antes de sua publicação, um dos avaliadores me perguntou na nossa reunião final: “Cê não tem medo do mineirês dos seus livros ser uma barreira entre ocê e os outros estados? Será que isso não afasta, por exemplo, um leitor de São Paulo?”
Concordei que podia ser, sim. Mas, na real, nem titubeei: com certo esforço, todo mundo se acostuma com o jeito de os personagens falarem. É a nossa marca, coisa nossa. Faço questão e amo como faço. José Falero, escritor gaúcho da atualidade, tá fazendo isso também, reproduzindo a oralidade da periferia de Porto Alegre não só nos diálogos de seus livros, mas também na própria voz narrativa de suas crônicas — já imaginou uma crônica escrita em um gauchês periférico? O treco é lindo demais de ver: leia o espetacular Mas em que mundo tu vive.
Mas de volta ao circo: eu disse que aprendi muito com John Steinbeck, mas não foi só no jeito de os personagens falarem; foi também na sua construção linguística e narrativa; ele é um verdadeiro mestre e gosta de experimentar. De quebrar barreiras de gêneros literários. Um mestre. Pra quem não sabe, na literatura, um conto é uma narrativa ficcional curta; um romance, uma narrativa ficcional longa (e “romance” aqui não significa que é sobre amor, não é “romântico”; é só um livro com uma história longa, sobre qualquer assunto, mas chamamos de “romance” mesmo quando o foco não é romance entre os personagens; O que disse o Imperador, por exemplo, é um romance); e uma novela é, grosso modo, uma narrativa de tamanho não muito curto nem muito longo, ou seja, nem conto, nem romance — meu livro Dona, por exemplo, é uma novela. Em 1950, o Steinbeck lançou O Filho Desejado (Burning Bright), uma novela… em forma de peça de teatro. Que ele chamou de “peça-novela”. Assim como meu livro Canção Lógica é um romance em forma de série de TV. Ou uma série de TV, digamos, com o quê de romance.
O Filho Desejado conta a história de um casal de trapezistas de circo, Joe e Murdeen, ele um homem já lá pela meia-idade, ela mais jovem. O sonho de Joe é ser pai, mas Murdeen, que não engravida de jeito nenhum e sabe que tem níveis regulares de fertilidade, acredita que Joe é estéril. Preocupada de que o maior desejo da vida do marido não vá se realizar em vida, ela acaba decidindo “usar” o jovem trapezista contratado, o vigoroso e petulante Victor, e engravida dele: e, mesmo com a revolta de Victor, Murdeen declara que Joe é o pai do bebê. A treta é mediada pelo melhor amigo de Joe, o palhaço Ed. E a história tem uma reviravolta bem novelesca, estilo telenovela da Globo e com uma pitadinha shakespeariana, mas um dos aspectos mais interessantes é que o plano de fundo só é o circo no primeiro ato da peça.
No segundo ato, o cenário muda: Joe e o amigo Ed são fazendeiros que moram lado a lado, e Victor aparece como um ajudante de Joe. No ato final, Joe é o capitão de um navio, e Victor, pasme!, é seu imediato (termo naval pra designar o eventual substituto do capitão caso ele falhe; achei perverso!) Já o terceiro ato é dividido em duas cenas, a cena final se passando num hospital onde a criança nasce — e aqui não há referência a nenhum dos cenários retratados nos três atos. Assim, o final serve igualmente como uma conclusão para qualquer um dos panoramas da história.
Steinbeck acreditava ser a primeira pessoa a se aventurar nesse estilo, e nisso me identifico muito com ele. Na introdução do livro, ele explica que essa forma ainda tinha potencial pra receber mais experimentações. Sinto isso sobre a segunda temporada de Canção Lógica, também; ela seguirá a mesma linha estrutural da primeira, mas tenho o intuito de testar algumas estratégias diferentes.
Além do mais, O Filho Desejado foi uma boa companhia durante a escrita das minhas duas peças de teatro “irmãs”, As Palmeiras que Queimam (2020) e sua sequência, De Primeira Viagem (2022). Fortemente influenciada também pela peça O Protocolo (1862) de Machado de Assis, As Palmeiras que Queimam conta a história de Marinheiro, um rapaz gay que, para ajudar seu amigo (até onde se sabe) hétero a “salvar” o namoro com a decidida Izabella, acaba se vendo envolvido numa treta que ameaça seu noivado com o doce Pedro. É uma peça sobre o quanto os ditames da heteronormatividade e da monogamia podem afetar até mesmo as mais promissoras e pacíficas relações. (Mas não é uma peça que busca trazer respostas; ela busca fazer perguntas.)
Sua sequência, De Primeira Viagem, mostra o casal Marinheiro e Pedro dois anos depois, “resolvidos” após os conflitos da primeira peça, mas enfrentando um novo desafio: a responsabilidade sobre uma criança. Recém-casados, os dois viajam para a praia, trazendo o sobrinho de Pedro, um menino amável, mas que os fará reconsiderar os planos de ter filhos. Outras chagas do relacionamento se revelam ao longo da trama, fomentando a discussão sobre as dificuldades não só de um casamento em si, mas de um casamento entre dois homens gays numa sociedade onde ainda faltam referências.
Tanto As Palmeiras que Queimam quanto De Primeira Viagem podem ser lidos em Kindle pela Amazon. As capas, maravilhosas, têm como base fotografias do genial Jonathan Fidelis.
P.S.:
Minha recente entrevista ao podcast Pod Ler e Escrever vai ao ar em janeiro, mas você pode conferir mais dois episódios de que já participei clicando aqui e aqui. E, se você curte história de zumbi, leia os livros e contos do Juliano Loureiro; e, se amar literatura como nós dois, acompanhe o site dele, Bingo, um dos maiores do país no assunto.
P.S. 2:
Claro que as definições de conto, novela e romance não se limitam à extensão de uma obra. Usei o tamanho como referência só pra simplificar a questão de Steinbeck considerar O Filho Desejado uma “peça-novela”.