A vida zomba de nós: José Falero & “Moby Dick”

Sempre que a vida tá naquelas fases em que o universo parece estar rindo da gente, me lembro de uma citação muito foda de Moby Dick. Gosto tanto dela que já até apresentei numa palestra. Fica no capítulo 49, “A hiena” — e o animal do título representa nada mais, nada menos que a própria vida, com sua risada esganiçada, rindo de nós, que às vezes parecemos não passar de piada cósmica.
O trecho é assim:
Há certas circunstâncias e ocasiões bizarras neste estranho e caótico negócio a que chamamos de vida nas quais um homem considera todo o universo uma grande piada, ainda que mal perceba a sua graça, e suspeita imensamente que a piada seja feita às custas dele mesmo, e de mais ninguém. No entanto, nada esmorece, e não parece valer a pena lutar contra momentos assim. Ele engole todos os acontecimentos, todas as crenças e credos, e convicções, todas as coisas difíceis, visíveis ou invisíveis, pouco importando quão intricadas sejam; como um avestruz de estômago poderoso devora cartuchos e pedras de fuzis. Quanto às pequenas dificuldades e preocupações, expectativas de desastres súbitos, perigo de vida ou ferimentos; tudo isso e a própria morte lhe parecem apenas manhosos e bem-humorados safanões, tapas nas costas dados pelo galhofeiro invisível e inexplicável. Esse tipo estranho de humor traiçoeiro ao qual me refiro assola o homem apenas nos momentos de tribulação extrema; aparece-lhe em meio à sua seriedade, de tal modo que aquilo que lhe parecia uma coisa muito importante passa a se afigurar como parte da piada como um todo.
E recentemente, lendo Os Supridores de José Falero, autor de Porto Alegre, me deparei com uma cena maravilhosa que mostra, mais na prática ainda, essas vivências de, quando um tanto de coisa já tá ruim ou irritante, mais coisas desastradas começam a acontecer com a gente — tipo derrubar a borra de café no chão quando você tá atrasado pra sair —, como se a vida estivesse testando a nossa já escassa paciência. (E zoando da nossa cara.)
Fica no capítulo 2, “Sonho de Riqueza”:
Foi difícil, mas o rapaz conseguiu vencer a forte vontade de faltar ao serviço naquela segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009. E quando finalmente dignou-se a sair de casa para ir trabalhar, sem a menor esperança de que aquele se revelasse um dia melhor do que outro qualquer, o sol vigoroso veio se alojar sobre seus ombros de cabide, como se o peso da mochila já não fosse desconforto suficiente para aborrecê-lo. A claridade fez seus olhos doerem um pouco, pelo que ele lançou uma careta inútil contra a imensidão do céu azul, à guisa de protesto, enquanto enfiava entre os beiços ressecados um de seus cigarros vagabundos. Deu alguns passos, imaginando, como de costume, se não teria esquecido qualquer coisa dentro de casa, e foi então que apalpou os bolsos da calça de brim, sem encontrar o isqueiro.
— Porra! — latiu, voltando de pronto para a porta de casa, que tinha acabado de chavear. E não fora nada fácil chavear aquela porta, bem como desfazê-lo tampouco seria, pois a fechadura, que já vinha dando problemas havia algum tempo, na última semana entrara em condições de funcionamento verdadeiramente irritantes.
Mas Pedro já estava familiarizado com imperfeições, como todo pobre que se preza, ainda que não se considerasse merecedor delas, como todo pobre que se despreza. Às vezes, avaliando tudo quanto lhe girava em torno, apanhava-se espantado com a quantidade de coisas que, de uma forma ou de outra, causavam-lhe descontentamento: os ônibus lotados, as roupas surradas, os cigarros vagabundos, a insuficiência de cobertas no inverno, a falta de um ventilador no verão, o cheiro horrível de esgoto no quintal, a casa repleta de ratos, baratas, aranhas, cupins, pulgas, carrapatos e lagartixas. “Nada é perfeito”, diz o ditado; acontece que na vida de Pedro nada era sequer minimamente razoável.
Com um suspiro eloquente, o rapaz tornou a meter a chave prateada na fechadura defeituosa, preparando-se para fazer uso de suas preciosas reservas de paciência. No entanto, ao girar o pulso com energia, não sentiu a resistência que esperava; apenas ouviu um estalo metálico, sem conseguir aceitá-lo como sinal de que a fechadura funcionara bem, devido ao hábito já transformado em instinto de suspeitar da boa sorte. E, com efeito, quando puxou a chave lentamente para fora, torturando a si próprio com aquele instante desagradável de suspense, viu sair junto com ela o miolo da fechadura, indevidamente liberto do único lugar onde poderia ser útil para alguma coisa. Então, para que não restasse esperança alguma de conserto, houve um segundo estalo, idêntico ao primeiro, e escorregaram, através do buraco deixado pelo miolo na superfície da fechadura, pecinhas e mais pecinhas que, de tão minúsculas, Pedro mal podia enxergar; espalharam-se todas pelo chão, algumas sumindo de vista.
Quem visse a maneira fleumática como o jovem conseguiu ficar parado ali, debaixo do alpendre da casa, não poderia imaginar a intensidade da cólera que, por um breve momento, percorreu-lhe as entranhas, tal qual uma descarga elétrica. Ele engoliu em absoluto silêncio a palavra feia que lhe tinha subido à garganta e relaxou a mão, que, por iniciativa própria, já ia se fechando para esmurrar a porta com toda a força. “Calma…”, pensou, se perguntando, de imediato, se agarrar-se à calma faria mais sentido do que abandoná-la por completo. “Um problema a mais, um problema a menos…”, foi o que argumentou, mentalmente, contra si mesmo. E o “problema”, diga-se de passagem, não era a fechadura totalmente estragada, nem a provável impossibilidade de repará-la e tampouco a falta de dinheiro para comprar uma nova; o “problema” era, isto sim, o isqueiro trancado dentro de casa. Movido a tabaco e maconha, Pedro via a posse de fogo como uma das coisas mais fundamentais de seu dia a dia. Mas, afinal de contas, como fora esquecer a porra do isqueiro? Antes tivesse esquecido de vestir as calças, pelo amor de Deus! Ergueu na altura dos olhos a chave, ainda espetada no miolo, e sentiu vontade de chorar, literalmente. Por que sua vida tinha que ser tão miserável?
Essa hiena ri, e às vezes é alto, viu?